sábado, 16 de setembro de 2017

A ordem



Era um homem letrado.
Alguém que passou todas as vidas pelas que passava, em
estudo e observação.
Meditou e decorou regras de todos os tempos.
Viu desabrochar as várias línguas da sua boca
E essas foram os reflexos, as imposições da sua própria
Língua-única.
Poliu sintagmas, decotou lexemas
E com eles, copiou, no presente, a conjuntura dos astros,
O movimento iterativo da História:
Aprisionou a indizível diacronia no instante sincrónico.(Estranha frase.)
Era um ser aprumado, mas de ideias circulares-quadradas.
Surgiam-lhe assim...! Sem mais!
Agarrava-se ao único poder que tinha: o paradigma.
E adornou, declinou, cultivou, urdiu, condenou
exageradamente também.
Ainda no presente, foi contemporâneo desatento dos
maiores poetas
E estranhou esta frase de Rimbaud (mais ainda a sua carta):
“Je est un autre.”
Certo da perfeição da regra singular, o mesmo homem,
Ou não estivesse ele convencido de que era todos os
homens,
Morreu das suas incansáveis mortes, descontente com a
imperfeição dos outros.
Numa noite, a meio de uma vida,
Acordou sem alento.
Tinham-lhe sussurrado ao ouvido:
“Procurarás os erros que revelam o Homem falível
E compreenderás o medo, a evolução
E a liberdade”

Filhos de que mãe



Trabalhavam até tarde.
Depois, traziam filhos ao colo
E suor fresco, perto dos seios.
Trapinhos e pedaços de sujo,
Poisavam-nos ali.

 Ali era lugar de todos,
Mas, peças trocadas de puzzles,
Misturavam-se com pouco à-vontade.
Com voz humilde (que outra voz podiam ter,
Senão o léxico de palavras gordas com sabor a bagaço?)
Pediam o que sabiam pedir...


Os outros,
Estátuas marmóreas, alegóricas e cultas. Uau!
Tentando perceber “nuances”. Ui!
Observavam de viés aqueles frutos cheirosos,
Manchas de néctar no vestido alvo de hoje. Bah!
Mas não tiravam as conclusões:

Eram pobres,
Porque gente in estava em todas
E propagava a sua pureza,
Sem saber que a sua bondade conspirava contra a humanidade;
Instruir, cultivar, formar, disciplinar, endoutrinar
Tinham por sinónimos
Dealbar, joeirar, separar, limpar, varrer, liquidar...


Tudo sempre ao serviço do bem
E o Paraíso, ali, à espera

Génesis


Os primeiros olhos despertos
Foram a primeira luz do primeiro dia
E souberam da primeira nuvem
E lhe deram a forma justa
Para satisfazer os primeiros lábios da sede
As mãos não sabiam ainda da força
Mas colheram o primeiro dos frutos
Como uma lição da primeira árvore
Que despertou a fome
E lhes segredou: “tomai o fruto porque a isso se chama posse”
O resto também foi assim
E assim o primeiro homem